quarta-feira, 15 de junho de 2011

Fantástico Cotidiano, no Centro Cultural São Paulo























Tia em dificuldades, de Julio Cortázar

Divirtam-se:


Tia em dificuldades

Por que havemos de ter uma tia com tanto medo de cair de costas? Há anos que a família luta para curá-la da obsessão, mas chegou a hora de confessar nosso fracasso. Por mais que no esforcemos, a tia tem medo de cair de costas; e sua inocente mania nos afeta a todos, a começar por meu pai, que a acompanha fraternalmente a toda parte e vai olhando o chão para que a tia possa andar despreocupada, enquanto minha mãe se esmera em varrer o pátio várias vezes por dia, minhas irmãs apanham as bolas de tênis com que se divertem inocentemente no terraço, e meus primos apagam todo rasto atribuído aos cachorros, gatos, tartarugas e galinhas que proliferam lá em casa. Mas de nada adianta, a tia só resolve atravessar os aposentos depois de prolongada vacilação , intermináveis observações oculares e palavras desaforadas a qualquer menino que passa. Depois se põe  a caminho, apoiando primeiro um pé e movendo-o como um boxeador no ringue, depois o outro, transladando o corpo num deslocamento que na infância achávamos majestoso, e demorando vários minutos para ir de uma porta a oura. É algo horrível.
Várias vezes a família tentou que minha tia explicasse com alguma coerência  o seu temor a cair de costas. Em certa ocasião ela foi recebida com um silêncio que se teria podido cortar com uma foice; mas uma noite, depois de beber seu copinho com aspirina, a tia insinuou que se caísse de costas não poderia tornar a levantar-se. Á observação elementar de que trinta e cinco membros da família estavam dispostos a acudir em seu socorro, respondeu com um olhar lânguido e duas palavras: “Tanto faz”.
Sem uma palavra assistimos à sua inútil e longa luta por erguer-se, enquanto outras baratas, vencendo a intimidação da luz, circulavam pelo chão e passavam rente à que jazia, morrendo em posição de decúbito dorsal.
Fomos para a cama com uma profunda melancolia, e por esta ou aquela razão ninguém tornou a interrogar a tia, limitamo-nos a aliviar na medida do possível seu medo, acompanha-la em seus passos, dar-lhe o braço e comprar-lhe uma quantidade de sapatos de solas antiescorregantes e outros dispositivos estabilizadores. A vida continuou assim, e não era pior do que outras vidas.

Discurso do Urso, de Julio Cortázar

Doce, poético ... lindo! Muito bom saborear esse texto e ver o Pomp Federico em ação! ... Mais um que está em Fantástico Cotidiano:


DISCURSO DO URSO

Eu sou o urso dos canos da casa, subo pelos canos nas horas de silêncio, pelos tubos de água quente, do aquecimento, do ar-condicionado, vou pelos tubos de apartamento em apartamento, sou o urso que vai por todos os canos.
            Acho que gostam de mim porque meu pêlo conserva os condutos limpos, corro incessantemente pelos tubos e do que eu mais gosto é passar de andar em andar escorregando pelos canos. Às vezes puxo uma pata pela bica e a moça do terceiro andar berra que se queimou, ou grunho na altura do forro do segundo andar e a cozinheira Guilhermina se queixa de que o gás anda ruim. De noite ando calado e é quando ando mais depressa, apareço no teto pela chaminé para ver se a lua está dançando lá em cima, e me deixo escorregar como o vento até as caldeiras do porão. E no verão nado à noite na cisterna salpicada de estrelas, lavo o rosto primeiro com uma mão, depois com as duas juntas, e isso me produz uma alegria muito grande.
Então escorrego por todos os canos da casa, grunhindo contente e os casais se agitam em seus leitos e reclamam contra a instalação dos encanamentos. Alguns acendem a luz e escrevem num paplezinho para lembrar-se de reclamar quando virem o porteiro. Eu procuro a bica que sempre fica aberta em algum andar, por ali meto o nariz e espio a escuridão dos quartos onde moram esses seres que não podem andar pelos canos, e fico com pena de vê-los tão desajeitados e grandes, de escutar como roncam e sonham em voz alta e estão tão sós. Quando eles lavam o rosto de manhã, eu lhes acaricio as faces, lambo-lhes o nariz e vou-me embora, vagamente convencido de ter feito um bem.

Cronópios, Famas e Esperanças


Conforme nos pediram, seguem alguns dos textos que estamos apresentando em FANTÁSTICO COTIDIANO:
 
Viagens

Quando os famas saem em viagem, seus costumes ao dormirem numa cidade são os seguintes: um fama vai ao hotel e pergunta cautelosamente os preços, a qualidade dos lençóis e a cor dos tapetes. O segundo se dirige à delegacia e declara, como segurança, quais os móveis e imóveis dos três, assim como o conteúdo de suas malas. O terceiro fama vai ao hospital e copia as listas dos médicos de plantão e suas especializações.
Terminadas estas providências, os viajantes se reúnem na praça principal da cidade, comunicam-se suas observações e entram no café para beber um aperitivo. Mas antes eles se seguram pelas mãos e dançam em roda. Esta dança recebe o nome de dança dos famas.
Quando os cronópios saem em viagem, encontram os hotéis cheios, os trens já partiram, chove a cântaros e os táxis não querem leva-los ou lhes cobram preços altíssimos. Os cronópios não desanimam porque acreditam piamente que estas coisas acontecem a todo mundo, e na hora de dormir dizem uns aos outros: “Que bela cidade, que belíssima cidade”. E sonham a noite toda que na cidade há grandes festas e que eles foram convidados. E no dia seguinte levantam contentíssimos, e é assim que os cronópios viajam.
As esperanças, sedentárias (acomodadas), deixam-se viajar pelas coisas e pelos homens, e são como as estátuas, que é preciso vê-las, porque elas não vêm até nós.


Histórias

Um cronópio pequenininho procurava a chave da porta da rua no criado-mudo, o criado-mudo no quarto de dormir, o quarto de dormir na casa, a casa na rua. Por aqui parava o cronópio, pois para sair à rua precisava da chave da porta.




A foto saiu fora de foco

Um cronópio vai abrir a porta da rua e ao enfiar a mão no bolso para pegar a chave o que tira é uma caixa de fósforos; então este cronópio fica muito aflito e começa a pensar que se em vez da chave ele encontra os fósforos, seria terrível que o mundo se houvesse deslocado de repente, e então se os fósforos estão no lugar da chave, pode acontecer que ele ache a carteira de dinheiro cheia de açúcar, e a lista de telefone cheia de música, e o armário cheio de telefones, e acama cheia de roupas, e as jarras cheias de lençóis, e os trens cheios de rosas, e os campos cheios de bondes. Assim, este cronópio fica horrivelmente aflito e corre para se olhar no espelho, mas como o espelho está um pouco de lado, o que ele enxerga é o porta-guarda-chuvas, e suas desconfianças se confirmam e ele dasata a soluçar, cai de joelhos e junta suas mãozinhas nem sabe pra quê. Os famas vizinhos acodem para consolá-lo, e também as esperanças, mas demora muito até que o cronópio saia do seu desespero e aceite uma chícara de chá, que olha e examina muito antes de beber, não vá acontecer que em lugar de uma xícara de chá seja um formigueiro ou um livro de Paulo Coelho.


Faça como se estivesse em sua casa

Uma esperança construiu uma casa e colocou-lho um azulejo que dizia: Bem-vindos os que chegam a este lar.
Um fama construiu uma casa e não colocou azulejo nenhum.
Um cronópio construiu uma casa e seguindo o hábito colocou na entrada diversos azulejos que comprou ou mandou fazer. Os azulejos eram dispostos do maneira que se pudesse lê-los em ordem. O primeiro dizia: Bem-vindos os que chegam a este lar. O segundo dizia: A presença do hóspede é suave como a flor. O quarto dizia: Somos pobres de verdade, mas não de vontade. O quinto dizia: Este cartaz anula todos os anteriores. Se manda, malandro.


Flor e cronópio

Um cronópio encontra uma flor solitária no meio dos campos. Primeiro pensa em arranca-la, mas percebe que é uma crueldade inútil, e se coloca de joelho junto dela e brinca alegrmente com a flor, isto é: acaricia-lhe as pétalas, sopra para que ela dance, zumbe feito uma abelha, cheira seu perfume, e deita finalmente debaixo da flor envolvido em uma enorme paz.
A flor pensa: “É como uma flor!”.


Tartarugas e cronópios

Agora acontece que as tartarugas são grandes admiradoras da velocidade, como é natural.
As esperanças sabem disso e não ligam.
Os famas sabem e caçoam.
Os cronópios sabem e cada vez que encontram uma tartaruga, puxam a caixa de giz colorido e na lousa redonda da tartaruga desenham uma andorinha.